Senti algo inédito no final daquele 10 de dezembro de 2020. Até onde escrevo, orientei cinquenta trabalhos de conclusão de curso de graduação e vinte e duas dissertações de mestrado. Foram mais de setenta “almas libertas” para os próximos passos de suas vidas. Mas, naquela tarde de terça-feira foi diferente, experimentei um vazio e uma saudade bonita, depois que a banca examinadora, composta pelas pesquisadoras Arlete Silva de Almeida (MPEG/PPGEO), Paula Fernanda Viegas Pinheiro (UFRA), Maria de Nazaré Martins Maciel(UFRA) e pesquisadores Christian Nunes da Silva (NUMA/PPGEO) e Orleno Marques da Silva Junior (IEPA), sendo por mim presidida, anunciou a aprovação da tese de doutorado de Leonardo, Dendeicultura e transformação da paisagem rural na microrregião de Tomé-açu, nordeste paraense. Brotava ali o primeiro doutor da minha lavra de orientandos.
Adoro quando discentes solicitam orientação e me sinto realizado quando compreendem que as gerações futuras aguardam nossas pesquisas. Independentemente de iniciação científica, graduação, mestrado ou doutorado as pesquisas devem estar comprometidas com a construção de um conhecimento prudente para uma vida decente como lembra Boaventura de Souza Santos. Deve-se emancipar não somente o orientando da vida acadêmica por meio da validação de seu trabalho com um título, mas contribuir para emancipar o campo científico da ignorância e do colonialismo do saber a que historicamente ficamos submetidos, sobretudo na Amazônia.
Leonardo me procurou por e-mail, acho que foi no final e 2016, perguntando-me se poderia orientá-lo na tese de doutorado. Pedi que me escrever algo e eu lhe responderia. E a resposta foi a semente de uma relação de respeito e admiração mútua pelo trabalho e uma obcecada vontade de aperfeiçoamento. Orientandos como este são raros e todo pesquisador sério gostaria de encontrar. Ao se integrar no Grupo de Pesquisas Dinâmicas Territoriais do Espaço Rural na Amazônia (GDEA), participou de reuniões de orientação e elaboração, construímos artigos, mapas e encontros da área. Isso porque, uma tese é pouco se o pesquisador não deixa um legado.
O oriente do pesquisador são as gerações futuras. A pesquisa assumindo a forma de testamento, legado que se deixa para que outros caminhos sejam facilitados. E aqui reside a grandeza da pesquisa de Leonardo. Sendo parte de sua tese de doutorado, neste livro o foco é a relação entre dendeicultura, política pública e transformação da paisagem na microrregião de Tomé-açu. Inicialmente reconstitui os caminhos e descaminhos da formação da dendeicultura da Amazônia. Para em seguida indicar o conjunto de ações políticas que presidem, sustentam e estrutura este processo de produção do espaço que é a dendeicultura. Sendo produção do espaço é também metamorfose na vestimenta do espaço, que é a paisagem. Deste ponto em dedica-se a reflexão pormenorizada e exaustiva das transformações da paisagem da Microrregião de Tomé-açu. Mostrando as alterações da paisagem nas áreas de plantio dos dendezeiros, afunilando para o estudo de caso das paisagens na Agropalma, inclusive mostrando isso na configuração espacial do arruamento. E finaliza com algumas recomendações.
Neste livro, o leitor encontra um esforço para relacionar duas categorias aparentemente distintas, paisagem e política; pois, nas análises sobre a paisagem não se faz relação desta com a ação política e, vice-versa, quando se analisa ação política não se considera suas implicações na paisagem. É como se uma categoria pertencesse ao reino da natureza física e outra a da condição humana e ambas não dialogassem. Longe disso, o autor ressalta que somente considerando a ação política compreenderemos claramente as reconfigurações das unidades de paisagens na microrregião de Tomé-açu; comportando-se o dendezal como unidade de paisagem, paisagem global cuja anatomia se compreende considerando a ação da cadeia produtiva global de óleos vegetais e seus impérios alimentares.
No dia seguinte comentei com a Cleo, então secretária do PPGEO, “acho que o sentimento de vazio é uma saudade bonita”, porque o doutorado é o estágio final da carreira acadêmica a partir do qual muitos doutores se tornam pesquisadores. Tal como pai, senti que o filho cresceu, apreendeu a se levantar quando caiu e assimilou que a pesquisa deve ser coerente e consistente. Leonardo sempre foi um pesquisador, faltava-lhe somente o título de doutor. E meu trabalho enquanto orientador foi tão somente dosar sua curiosidade, criatividade, resignação, paciência e grande resiliência com densa leitura, rigor metodológico e dados primários. Pronto. Eis a tese, o doutor e o livro. Sinto que cumpri meu papel. Num período de isolamento social, do quintal de casa em Ananindeua, numa tarde quente e suada do dia 14 de maio de 2020, escrevo essas linhas.
Prof. Dr. João Santos Nahum (FGC/IFCH/UFPA)