Um livro escrito com a terra debaixo da unha. Um livro que narra os caminhos e descaminhos que culminaram na materialização da dendeicultura no lugar onde há décadas famílias vivificavam um modo de vida alicerçado no criar, cultivar, extrair e produzir necessário à existência. Verdadeira arqueologia de uma situação geográfica silenciada pelos extensos dendezais, Cleison mostra passo a passo as metamorfoses espaciais necessárias à implantação do projeto de produção de fruto fresco colhidos de dendê por agricultores familiares associados à Agropalma.
Tendo por fundamento a teoria social do espaço, no primeiro momento oferece elementos para a compreensão da situação geográfica anterior à chegada da dendeicultura. Desenha, como resultado de um intenso trabalho de campo, um quadro da condição espacial do sitiante camponês, seus saberes e fazeres. O pesquisador interessado em compreender como era o Arauaí antes dos dendezais, encontra neste capítulo uma fonte digna dos primeiros cronistas da Amazônia. Rico em informações e dados primários e ilustrações.
No capítulo seguinte delineia-se a ação do Estado, da Agropalma e de agentes locais no sentido de viabilizar a área e força de trabalho para um assentamento produtor de fruto fresco colhido de dendê. Tal projeto torna-se referência para outros envolvendo a integração de produtores familiares e empresas dendeicultoras. O capítulo clarifica os processos espaciais que permitiram a área onde, até o final da década de noventa do século passado, não havia dendezal, erguer-se o projeto piloto de agricultura familiar de dendezeiro e, por conseguinte, campos de cultivo que produzem uma representação do espaço como que sempre estiveram no lugar, silenciando o que havia antes.
O capítulo final mostra as metamorfoses no modo de vida inicialmente descrito. Analisa as mudanças e permanências a partir da integração do agricultor familiar ao circuito produtivo do dendê, focando na produção de culturas alimentares. Neste momento o processo espacial de transformação do sitiante camponês em agricultor do dendezeiro se completa. O autor mostra alterações no mundo do trabalho, na situação das culturas alimentares e no modo de vida como um todo. Emerge a figura enigmática do agricultor integrado à produção de dendê, que não é nem camponês, pois o ritmo e rotina do trabalho não é determinado pela unidade familiar, mas sim pela empresa; não é um assalariado rural, pois não vínculo empregatício com a empresa; tampouco é um capitalista, posto que seu foco não é a reprodução do capital. Nossas pesquisas conduziram-no a levantar a hipótese de que estamos diante de uma variação de precariado. As pesquisas desenvolvidas pelo Observatório do Dendê caminham no sentido de pensar essa hipótese.
O leitor tem diante de si a versão da tese de doutorado de Cleison, de quem tive a felicidade de conhecer. Todo o orientador gostaria de tê-lo como orientando. Joia rara que dá sentido ao trabalho docente e a pesquisa. Nos faz acreditar que pesquisar é preciso, pois a gerações futuras estão esperando um conhecimento consciente e consiste, construídos da Amazônia por amazônicas que pisam no chão de onde pesquisaram, que tomaram banho no igarapé, que colheram frutos no mato, que tomaram café na casa do entrevistado, que ouviram o silêncio da noite na mata e não se preocuparam se pegava ou não sinal de celular e internet.
Conheci Cleison, no final da década de 1990. Desde então fui seu orientador de trabalho de conclusão de curso de geografia, de dissertação de mestrado e de tese de doutorado em geografia. Tornam-nos irmãos em pesquisa e sonhos. Fruto disso são os livros, capítulos de livros e artigos publicados em conjunto, expressão de uma afinidade rara num mundo acadêmico abduzido pela produtividade desfocada. Pesquisas que tão somente retribuem à sociedade cabocla amazônida e a sociedade brasileira em geral, o investimento feito em educação, ciência e pesquisa de qualidade.
É isso, boa leitura
Ananindeua, 18 de outubro de 2022,
Lua Minguante em Leão
João Santos Nahum