Não são apenas a abrangência e extensão territorial que materializam a relação entre fronteiras e linguagens, e que inviabilizam a tentativa de dela nos servirmos para apresentar o presente livro. São também os diálogos fronteiriços em sentidos múltiplos, os quais refletem a linguagem em suas diversas perspectivas.
Assim, convidamos as leitoras e os leitores a realizar uma desafiadora incursão pelos quinze capítulos que compõem as duas partes deste livro, formadas por sete textos na primeira e oito na segunda, os quais foram escritos por pesquisadoras e pesquisadores de várias regiões do Brasil. Ainda que de modo heterogêneo, as autoras e os autores se interligam a partir do desenvolvimento de atividades de ensino, pesquisa e extensão acerca do eixo temático Diálogos fronteiriços: Linguagens em perspectivas.
A primeira parte do livro prioriza os diálogos fronteiriços a partir da territorialidade, sob a confluência da multi/inter/trans/indisciplinaridade dos estudos da linguagem (linguística e/ou literatura). As pesquisas destacam, assim, nesse momento, como diretriz para as discussões apresentadas, as aproximações entre territórios e identificações, subjetividades, resistência e cultura, a partir da diversidade dos objetos de estudo e das abordagens realizadas.
Primeiramente, na tentativa de compreender o processo de construção identitária de um ethos que ao mesmo tempo em que é objeto de pertença de vários territórios, vive o conflito de não pertencer a lugar nenhum, o capítulo “A construção identitária do ethos fronteiriço na música ‘fronteira que não faz fronteira’ de José Mendes”, escrito por Elionai Mendes daSilva, procura, sob uma perspectivados estudos discursivos, averiguar a construção do ethos fronteiriço na referida música.
No segundo capítulo, intitulado “Construções de tópico na fala culta e popular de Salvador: uma abordagem variacionista”, Lenilza Teodoro dos Santos Mendes realiza um estudo comparativo das construções de tópico do tipo deslocamento à esquerda de sujeito na fala culta e coloquial de Salvador. Para tanto, através de análise quantitativa e qualitativa, utiliza o aparato teórico-metodológico da Sociolinguística Variacionista, com ênfase na Variação Social do português brasileiro e Funcionalismo aliado à Pragmática.
O terceiro capítulo, “Impactos da formação intercultural no processo de insurgência indígena Tapuia”, de Tânia Ferreira Rezende e Eunice da Rocha Moraes Rodrigues-Tapuia, tem como ponto de partida as dinâmicas que constituem a identidade indígena Tapuia. Com base em produções e em narrativas dos(as) docentes Tapuias, sob uma perspectiva sociolinguística intercultural decolonial, as autoras discutem o processo de insurgência do povo e do português Tapuia, no contexto de políticas linguísticas e práticas de ensino fomentadas pela formação docente intercultural.
No quarto capítulo, “Mulheres migrantes em região de fronteira: narrativas, opressão e sobrevivência”, Martha Julia Martins de Souza faz um recorte teórico e reflexivo acerca de um projeto de pesquisa seu, em andamento na Universidade Federal de Roraima (UFRR). Tal projeto visa pensar a desigualdade de gênero estrutural imposta a essas migrantes a partir de uma lógica colonial moderna que produz conhecimento, narrativas, estruturas e conceitos binários, excludentes, misóginos e racistas.
Em “Pertencer e partilhar: diferentes formas de possuir”, quinto capítulo da primeira parte desta obra, a pesquisadora Laísa Tossin apresenta uma análise semântico-enunciativa de pronomes possessivos em Apinajé, Jarawara, Diyrbal e Português. Ao constatar a presença de um conjunto de predicados descritivos para a designação de pronomes possessivos que distinguem posse de propriedade, a autora nos convida a pensar sobre as diferentes concepções de pertencimento e de reconhecimento de si como integrante de um grupo ao elaborar uma reflexão sobre ter um nome, uma língua e um território.
O sexto capítulo, “Reflexões sobre o empoderamento da memória através da língua”, escrito por Daniele da Silva Fernandes Rodrigues e Emerson Carvalho de Souza, propõe a língua como forma de empoderamento da memória coletiva de determinada comunidade, bem como a importância da conservação desse legado sócio-histórico. Para viabilizar essa relação, os autores priorizaram o cenário indígena da comunidade Malacacheta, por dois motivos principais: por ser a mais antiga das que compõem a Serra da Lua, no munícipio de Cantá, em Roraima, e principalmente pelos intensos processos de transformação cultural e perda sucessiva de sua língua materna. Os autores nos convidam a refletir a natureza efêmera da memória e como esta se contrasta com a tentativa de consolidação por meio das características linguísticas próprias do contexto escolhido.
No sétimo capítulo desta primeira parte, em “Vozes negras na literatura latino-americana”, Francelina Barreto de Abreu analisa a construção do feminino no romance O cortiço, de Aluísio Azevedo e nos poemas Me gritaron negra, de Victória Santa Cruz, e Negra soy, de Mary Grueso Romero. Esse estudo comparativo possibilita-nos a compreensão da representação da mulher negra na literatura latino-americana, construída em períodos históricos diferentes, permitindo-nos tecer um olhar sobre a construção da memória da figura feminina ao longo do tempo, perpassando por temas polêmicos como preconceito, submissão, erotização do corpo feminino; mas como resposta, a resistência e empoderamento feminino.
A segunda parte do livro aborda os diálogos fronteiriços sob distintas perspectivas teórico-metodológicas dos estudos da linguagem e seus atravessamentos fronteiriços às áreas outras (tais como, o Cinema; o Discurso e linguagem jurídica; Educação de Jovens e Adultos; a Educação para as relações étnicos-raciais; o Livro didático; o Ensino de Português como Língua Estrangeira; e, Formação Continuada de Professores). Tematizam, assim, como questões em comum, os modos de realização e aspectos da linguagem, ou seja, a linguagem em suas múltiplas perspectivas.
No oitavo e nono capítulo, o cinema e a literatura são os fios que conduzem os diálogos fronteiriços. Em “A coleção invisível: o processo de deslizamento sígnico como gerador de sentidos”, fundamentadas teoricamente nos estudos da Semiótica da Cultura, e na Teoria da Tradução Intersemiótica, as autoras Marlucia Mendes da Rocha e Carla Serafim investigam o processo tradutório e de construção das narrativas fílmicas A Coleção Invisível, o documentário Os Magníficos, de Bernard Attal, e o conto A Coleção Invisível, de Stefan Zweig. A investigação do processo criativo ocorre pelo processo de tradução sígnica, responsável pela construção de uma nova representação cultural.
O capítulo nono, intitulado “O filme-ensaio como bifurcação da linguagem na metaficção homoerótica do filme Ilha”, os autores Valéria Amim e Patrick Silva Cavalcante operam um diálogo fronteiriço entre o cinema, a filosofia e a literatura acerca do filme-ensaio, um gênero aberto, híbrido e indefinível, semelhante a um “enxame de abelhas bifurcando por todos os lados”.
No décimo capítulo, “Da (in)acessibilidade do discurso e da linguagem jurídica: o caso das ementas jurisprudenciais”, Bougleux Bonjardim da Silva Carmo analisa a linguagem jurídica do gênero ementa jurisprudencial quanto ao vocabulário, de forma específica, na relação entre a linguagem e acessibilidade lexical como direito. Metodologicamente, o autor empregou categorias da Análise Crítica do Discurso referente à significação representacional e utilizoucomo ferramenta, o software AntConc, para um tratamento de caráter lexicológico de ementas que tratam de plágio disponíveis na homepage do Supremo Tribunal de Justiça.
Os cinco capítulos que encerram a segunda parte deste livro, por sua vez, têm como regularidade, a educação e, mais especificamente, o ensino. Laudineia de Souza Sartore e Maria D’Ajuda Alomba Ribeiro, no décimo primeiro capítulo, “A proficiência leitora na Educação de Jovens e Adultos”, discorrem sobre a aquisição da proficiência leitora na Educação de Jovens e Adultos, através da apropriação das etapas de leitura, enfatizando o papel do professor no processo de aquisição da leitura dos alunos da EJA. Além disso, analisam a aquisição da proficiência leitora através da apropriação das etapas da leitura, com foco na compreensão leitora, como mediadora da aprendizagem.
Já por outro lado, no décimo segundo capítulo, “Construção da autenticidade na escrita e etnicidade negra: relações em comum?”, Fernando Porfirio Lima e Gabriel Nascimento analisam a concepção de autoria em relação à escrita produzida por pessoas negras recém-ingressadas na universidade pública. A ideia de autenticidade engloba a concepção de singularidade na escrita, ou seja, como as marcas do autor são impressas no texto. Essa discussão nos leva a reconhecer a importância da questão ética no processo deescritae direitos autorais no país. Os pesquisadores buscam reconhecer em quemedida a escrita por estudantes negros pode fornecer subsídios para afirmar a ideia de indícios de autoria como forma de fomentar práticas antirracistas.
No décimo terceiro capítulo, “Os livros didáticos e a escrita de mulheres negras: como a representatividade marca o ensino de língua para jovens do ensino médio”, Verônica de Souza Santos pontua relevantes reflexões acerca do que coleções didáticas aprovadas pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD/2018) do Ministério da Educação apresentam acerca da presença/ausência da escrita de mulheres negras. O impacto desta (in)visibilidade permite identificar implicações no processo e de aprendizagem de estudantes que absorvem o conteúdo dessas coleções, ressaltando que uma parcela esmagadora é originária de regiões periféricas e o reforço de um ensino elitista, eurocêntrico e segregador, apaga a produção de grupos marginalizados, ocasionando efeitos devastadores.
Já no décimo quarto capítulo, intitulado “Os espaços enunciativos em capas da revista Língua Portuguesa como estratégia de ensino de Português como Língua Estrangeira”, de autoria de Maria D´Ajuda Alomba Ribeiro e Samara de Oliveira Santos, há uma reflexão sobre estratégias de ensinar o Português como Língua Estrangeira (PLE) a partir do gênero capa de revista. Assim, as autoras destacam a relevância do ensino-aprendizagem a partir da abordagem da multimodalidade e da promoção do letramento.
No último texto que contempla esse livro eletrônico, “Proação e Parfor: uma análise crítico-reflexiva do fazer pedagógico do professor de ensino fundamental”, Amanda Santos Alves e Maria D’Ajuda Alomba Ribeiro discutem a relevância da formação continuada no fazer pedagógico do professor que atua na educação básica. As pesquisadoras escolhem como lócus de estudo o eixo Ilhéus/Itabuna, no estado da Bahia, tendo como foco de investigação os professores participantes do Programa de Formação de Professores em Atuação na Educação Básica (Proação) e do Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (Parfor), ambos os cursos ofertados na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), direcionando, a partir dos programas formativos e dos docentes o seu olhar para a educação básica.
Em conclusão a este momento de apresentarmos o texto a vocês leitoras e leitores, destacamos, por fim, que todo o percurso trilhado é, por assim dizer, apenas uma parte no todo que formam os diálogos fronteiriços, priorizando a linguagem em suas múltiplas perspectivas. Assim, fazemos nossas as palavras de Roland Barthes, em seu ensaio “Aula”, alusivo à aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Collège de France, em 1978:
Gostaria, pois, que a fala e a escuta que aqui se trançarão fossem semelhantes às idas e vindas de uma criança que brinca em torno da mãe, dela se afasta e depois volta para trazer-lhe uma pedrinha, um fiozinhodelã, desenhandoassimao redorde umcentrocalmo toda uma área de jogo, no interior da qual a pedrinha ou a lã importam finalmente menos do que o dom cheio de zelo que deles se faz (BARTHES, 1978, p. 44)¹
Que a fala e a escuta traçadas na tessitura de Diálogos fronteiriços: Linguagens em perspectivas, possibilitem a outras leituras e abordagens possíveis, algo sempre admissível e necessário. Esperamos, portanto, que o presente livro, possa despertar e ampliar nas leitoras e nos leitores o interesse pela temática, bem como motivar novas discussões num diálogo aprofundado.
Desejamos uma boa leitura a todas/os!
Maria D’Ajuda Alomba Ribeiro (PPGLLR/UESC e PVNS/CAPES/PPGL/UFRR)
Jairo da Silva e Silva (PPGLLR/UESC e IFPA)
Gabriel Nascimento (USP e UFSB)
Gisane Souza Santana (PPGLitCult/UFBA)
Organizador@s
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¹ BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1978.