Descrição
Nova urbanização na Amazônia do Século XXI?
Jovenildo Cardoso Rodrigues
Léa Maria Gomes da Costa
Marlon Lima da Silva
“Urbanização, desigualdade e financeirização: re-discutindo o direito à moradia em cidades amazônicas” constitui um tema complexo, dotado de interfaces, determinações e contradições, cujas manifestações espaciais demandam olhares atentos, sensibilidades aguçadas, pesquisas revisitadas e análises entrelaçadas. Integrar as pesquisas desenvolvidas pelos autores reunidos nesta obra foi um desafio teórico-metodológico e empírico grandioso, sobretudo, em razão da diversidade territorial e das profundas transformações urbano-rurais evidenciadas nas cidades amazônicas nestas primeiras décadas do século XXI. Tal fato exigiu escolhas que, para além da proximidade entre as temáticas abordadas, considerou o caráter contributivo e inovador dos processos metodológicos e ações de pesquisa, em seu alinhamento aos horizontes empíricos particulares de cada uma das produções científico-acadêmicas aqui congregadas.
No livro A Urbanização Brasileira, o geógrafo Milton Santos ponderou que a difusão do “meio técnico-científico-informacional” assumiu dimensões jamais vistas, complexificando simultaneamente a “urbanização do território” e a “urbanização da sociedade”. Naquelas circunstâncias histórico-geográficas dos anos de 1990, fluxos de capitais penetravam em diferentes porções regionais do Brasil, fato que exigia esforços interpretativos no sentido de apreender as dinâmicas territoriais e de propor caminhos alternativos na construção de uma outra possibilidade de pensar o urbano, como positividade e como realização do humano, em oposição aos imperativos histórico-estruturais que reforçavam a condição periférica da urbanização brasileira.
A nova urbanização do território brasileiro, evidenciada a partir do século XXI, vem se configurando como momento marcado por intensas mutações espaciais interescalares, reestruturação urbana e da cidade, intensificação de processos de diferenciações socioespaciais, recomposições urbanas, periferização dos espaços metropolitanos e não metropolitanos, fortalecimento do papel das cidades médias na rede urbana, avanço de novos agentes econômicos de capital nacional e internacional na escala das cidades, bem como, pela configuração de policentralidades urbanas, fragmentações e desigualdades socioespaciais (Sposito et al., 2023)
A questão da financeirização habitacional ganha notabilidade à medida em que os territórios urbanos metropolitanos e não metropolitanos amazônicos passaram a ser intensamente impactadas pelo avanço de novos agentes econômicos do circuito imobiliário e financeiro, bem como, pela nova urbanização (concentrada, extensiva e diferencial) em múltiplas escalas (planetária, brasileira e amazônica), com manifestações profundas na produção do espaço urbano (Brenner, 2015; Rodrigues, 2024).
Em escala regional amazônica, processos de reestruturação urbano-regionais, ações estruturantes do Estado, antecipações espaciais por parte de agentes econômicos, avanço do mercado imobiliário de capital nacional e internacional, planejamento e gestão públicas que induzem a estrangeirização de terras, avanço de novos agentes do agronegócio globalizado na escala regional amazônica, ampliação da extração mineral em algumas porções do território, implementação de grandes projetos urbanos como objetivo de induzir a indústria do turismo, particularmente, em espaços metropolitanos, ações corporativas de agentes econômicos de capital imobiliário, financeiro, do comércio e do consumo, constituem alguns elementos da nova condição urbana Amazônica e sua incorporação aos circuitos de reprodução do capital.
Como produto de coexistências cruzadas, assistimos os tempos lentos das cidades e da vida ribeirinha amazônica sendo gradativamente solapados, invisibilizados, tensionados, diluídos, coagidos, por ordens distantes e por interesses econômicos exógenos ao lugar, cuja intencionalidade, ligeireza e voracidade, transformam natureza em mercadoria, terra em latifúndio, trabalho em riqueza apropriada pelo capital. Por sua vez, as cidades médias desta região têm sido “tomadas” na velocidade dos processos de reestruturação urbana, amalgamadas, combinadas e misturadas em suas múltiplas faces (ribeirinha, da beira da estrada) para atender aos interesses de negócios financeiros, imobiliários e corporativos.
Modos de viver e de habitar milenares tendem a se tornar espaços de resistência, em face do estabelecimento da tendência de expansão de circuitos econômicos imobiliários e não imobiliários, de políticas urbanas pautadas em commodities financeiras, com predomínio de uma racionalidade neoliberal e de uma lógica de organização espacial fragmentária nas cidades grandes e médias, anunciando o alvorecer da tendência de urbanização capitalista (concentrada, extensiva e diferencial) e de cidades fragmentadas.
Na miríade desses múltiplos processos espaciais reescalonados e articulados, a nova urbanização do espaço amazônico apresenta efeitos territoriais na produção do espaço urbano-regional, dentre os quais destacamos: 1) ampliação de diferenciações urbanorregionais, 2) reconfiguração da rede urbana amazônica, 3) crescimento demográfico e espacial de cidades médias e de porte médio, 4) estruturação espacial com expansão de shoppings centers, 5) intensificação de desigualdades socioespaciais, 6) políticas urbanas centradas em grandes projetos (industriais, urbanos e comerciais), 7) fortalecimento da importância das cidades médias na rede urbana (Rodrigues, 2024; Lima e Rodrigues, 2023).
As reflexões aqui apresentadas, consideradas as particularidades dos recortes temáticos e territoriais, propósitos e contextos, demonstram que as novas diferenciações espaciais que emergem nas cidades amazônicas encontram o “DNA” do patrimonialismo, do clientelismo e do rentismo, constituindo profundas desigualdades e segregações que parecem se atualizar em processo de fragmentação socioespacial e de precarização do mundo do trabalho. De quebra, evidencia-se a pauperização político-administrativa dos órgãos de planejamento e gestão. Especialmente, no sentido de mobilização de demandas cruciais como, por exemplo, o direito à moradia, diante das aceleradas transformações.
As pesquisas apresentadas neste livro foram constituídas ao longo dos últimos seis anos, como parte dos resultados de pesquisas desenvolvidas junto ao Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Habitação e Moradia – LAHAM/UFPA e ao Programa de Pós-Graduação em Geografia – PPGEO/UFPA. Sua construção processual é resultado de trajetórias intelectuais entrelaçadas, de leituras articuladas, amalgamadas pelo viver urbano amazônico, de encontros e desencontros fortuitos e perenes. Um projeto intelectual co-participativo e colaborativo, no qual não apenas os autores são protagonistas na leitura do espaço, mas as comunidades, os territórios do habitar e do viver, do pensar e do sentir, possuem importância seminal, tanto no processo, quanto no resultado da pesquisa.
Do arsenal de possibilidades que ditam as diferenciações espaciais da urbanização na Amazônia nas primeiras décadas do século XXI, selecionamos três eixos principais para orientar as reflexões: 1) Nexos entre financeirização, moradia e trabalho nas cidades amazônicas; 2) Planejamento, gestão e políticas públicas na escala metropolitana; 3) Urbanização, desigualdade socioespacial e direito à moradia. De modos distintos, cada um dos eixos temáticos revela que, embora um conjunto de inovações técnicas, políticas e econômicas seja difundido no curso da urbanização contemporânea no Brasil e no mundo, especialmente pelo neoliberalismo e pela financeirização, as diferentes cidades da região amazônica carregam mudanças e permanências vinculadas aos processos de resistência territorial, a partir do encontro e desencontro de interesses, intencionalidades e ações contra hegemônicas, que permitem fortalecer as lutas pelo direito à cidade e ao território de existência.
O primeiro eixo temático Nexos entre financeirização, moradia e trabalho nas cidades amazônicas reúne quatro capítulos:
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- No capítulo 1, denominado Territórios da moradia e financeirização da cidade: breve introdução ao debate, o autor Jovenildo Cardoso Rodrigues tece breves explanações sobre a questão da habitação e moradia em uma perspectiva territorial, portanto, geográfica, levando em consideração a financeirização habitacional no período contemporâneo. O autor conclui que os “territórios da moradia popular para o bem viver” possibilita-nos ver para além dos processos hegemônicos da financeirização da cidade, constituindo elemento fundamental para pensar em cidades e o “direito à moradia”.
- No capítulo 2, denominado Financeirização da habitação e desigualdades socioespaciais na Amazônia paraense, os autores Jovenildo Cardoso Rodrigues e Jondison Cardoso Rodrigues discutem criticamente sobre os efeitos da política habitacional brasileira (do PMCMV), suas repercussões nas condições de moradia e desigualdades socioespaciais na escala da cidade de Marabá, estado do Pará no contexto da financeirização da habitação. Os referidos autores argumentam que a política habitacional do PMCMV, contribuiu para a ratificação do padrão de desigualdade socioespacial e para a acessibilidade desigual a equipamentos urbanos na escala da cidade de Marabá.
- No capítulo 3, denominado Financeirização e fragmentação socioespacial: reflexões a partir da dinâmica habitacional de Ananindeua-PA, os autores Izabel Nahum Dias e Jovenildo Cardoso Rodrigues buscaram analisar as correlações entre a financeirização habitacional e a constituição de um padrão espacial fragmentado na escala da cidade de Ananindeua a partir dos anos de 2000. Os autores argumentam que o processo de financeirização vem contribuindo para a constituição de um padrão espacial fragmentado na escala da cidade de Ananindeua, na Amazônia paraense.
- No capítulo 4, denominado Deliverização do trabalho no espaço metropolitano amazônico: análise a partir de Belém, Pará, Raimundo Sócrates de Castro Carvalho e Jovenildo Cardoso Rodrigues discutem as práticas espaciais e as novas condições do trabalho dos motoentregadores de aplicativos de delivery no espaço metropolitano de Belém, na última década do século XX. Os autores argumentam que as metamorfoses do trabalho deliverizado são produtos da dinâmica de realização do capital, que tendem a contribuir para aprofundamento de desigualdades socioespaciais e ampliação do processo de exploração do trabalho no espaço.
O segundo eixo temático Planejamento, gestão e políticas públicas na escala metropolitana é composto por dois capítulos:
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- No capítulo 5, intitulado Novos caminhos para o direito à moradia na Região Metropolitana de Belém, Marlon Lima da Silva debate o direito à moradia na escala metropolitana. Dialoga com as dinâmicas recentes na estrutura espacial, no déficit habitacional e no sistema de governança, apontando horizontes de ação frente aos desafios emergentes.
- No capítulo 6, denominado Espaços precários em Outeiro, Belém do Pará: subsídios às políticas e ações de saúde, Gilberto de Miranda Rocha, Emílio Chaves Rocha, Clícia Julie Batista Brata e Daniel Araujo Sombra Soares evidenciam o desafio para a ampliação do Sistema Único de Saúde (SUS) no contexto de enormes precariedades enfrentadas em diversas porções do Distrito Administrativo de Outeiro. Os autores concluem mostrando um quadro prioritário para a urgente instalação de novas unidades de saúde.
Finalmente, o terceiro eixo temático reúne quatro capítulos:
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- No capítulo 7, denominado Territórios insulares e fragmentação socioespacial na Amazônia paraense: uma leitura a partir dos espaços urbano-rurais de Ananindeua, Paula Beatriz Rego Menezes e Jovenildo Cardoso Rodrigues discutem os efeitos da fragmentação socioespacial nas práticas espaciais dos moradores da Comunidade de João Pilatos, porção territorial norte insular do município de Ananindeua, face ao contexto metropolitano de Belém, na segunda década do século XXI.
- No capítulo 8, denominado Habitação e expansão urbana: os ciclos da produção da moradia popular em Belém, os autores Léa Maria Gomes da Costa e Jovenildo Cardoso Rodrigues, tomando como referência o processo de expansão urbana e destacando a ação do Estado e do mercado imobiliário, discutem o processo de produção da habitação popular, identificando três grandes períodos ou ciclos que assinalam essa produção na escala metropolitana de Belém.
- No capítulo 9, denominado Urbanização e vulnerabilidade socioespacial: resistências urbanas e luta pela moradia na porção sul de Ananindeua-PA, os autores Gilmara Oliveira da Silva e Jovenildo Cardoso Rodrigues abordam os efeitos da urbanização e da reestruturação metropolitana nas condições de moradia e nas práticas socioespaciais dos moradores da porção sul da cidade de Ananindeua a partir dos anos de 2000. Os referidos autores concluem que o avanço da urbanização e sua expressão na expansão urbana desordenada vem contribuindo para a intensificação de vulnerabilidades e desigualdades socioespaciais na porção sul da cidade de Ananindeua.
- No capítulo 10, denominado Moradia e desigualdade socioespacial: uma abordagem a partir da cidade de Parauapebas, Pará, Rodrigo Luciano Macedo Machado, Jovenildo Cardoso Rodrigues e Rui Jorge Gama Fernandes discutem como se configurou a relação entre urbanização e desigualdades socioespaciais na produção da moradia em Parauapebas, a partir dos anos 2000. Os respectivos autores argumentam que a implantação do PMCMV na cidade de Parauapebas, sudeste paraense, possui como efeitos “colaterais” do referido programa, a construção de megaempreendimentos padronizados inseridos nas piores localizações da cidade, fato que contribui para ratificar o padrão desigualdade e reduzida acessibilidade a equipamentos e serviços urbanos essenciais para a qualidade de vida urbana digna.
As pesquisas reunidas e apresentadas neste livro, para além de sua condição analítica (teórica, metodológica e empírica), buscam contribuir na construção de uma leitura urbana crítica, que permita deslindar alguns caminhos analíticos, processos, práticas espaciais, bem como, a nova condição urbana de algumas cidades amazônicas, em um momento oportuno para enunciações que provoquem a criatividade e estimulem a urbanidade, a justiça espacial e o direito ao território.
Finalizamos agradecendo ao professor e amigo Gilberto de Miranda Rocha, pela generosidade e possibilidade aberta para publicação desta obra. Agradecemos também à Coordenação de Pessoal de Ensino Superior – CAPES, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, pelo financiamento às Pesquisas, e aos queridos membros do Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Habitação e Moradia – LAHAM, que foram incansáveis nas idas e vindas do processo de construção e revisão desta obra.
Desejamos boa leitura a todos!
Referências
AALBERS, M. B. The financialization of housing: A political economy approach. London: Routledge, 2016.
BRENNER, N. New Urban Spaces: Urban Theory and the Scale Question. Oxford, 2019. https://doi.org/10.1093/oso/9780190627188.001.0001.
SILVA, M. L.; RODRIGUES, J. C. Urbano Contemporâneo e estrutura centro-periferia. Revista MERCATOR: Fortaleza, 2023.
SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão; MIYAZAKI, Vitor Koiti; SANTOS, Rafael Roxo dos; MELAZZO, Everaldo Santos. Fragmentação socioespacial e urbanização brasileira: escalas, vetores, ritmos, formas e conteúdos. Enanpur, Belém, mai. 2023.
RODRIGUES, J. C. Territórios da Moradia e Financeirização da Cidade: breve introdução ao debate. In: RODRIGUES, J. C; COSTA, L. G.; SILVA, M. L. CARVALHO, R. S. C. (Orgs). Urbanização, desigualdade e financeirização: re-discutindo o direito à moradia em cidades amazônicas. Editora NUMA: Belém, 2024.
